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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O PASSADO ÀS VEZES VOLTA PARA NOS ALIVIAR


Estava sentada em uma sorveteria em Caldas Novas, espairecendo um pouco as idéias, para voltar e continuar a trabalhar em minha dissertação, quando entra um casal e mais uma moça. Pareceu uma família. Eu sou do tipo que se estou andando ou preocupada com algo, não presto atenção em nada, mas se estou tranqüila eu noto detalhes, sondo as emoções e ações das pessoas.

A mãe e a filha foram pedir o sorvete e o homem sentou numa mesa próxima. Olhei disfarçadamente para ele, chamou atenção a cor café da pele com os olhos azuis como um céu sem nuvens. Ele colocou a mão direita apoiando o queixo e notei que faltava um pedaço do dedo indicador... Comecei a ficar inquieta! A mulher vira para ele e diz: “Adão, você quer sorvete de pequi?” Gelei! Adão???

Voltei no tempo, quando tinha 4 anos e revivi em instantes a dor, medo e culpa que eu por muitos anos carreguei, até conseguir jogar no esquecimento tudo que aconteceu.

Eu era uma garotinha introspectiva, embora falante. Gostava da solidão e dos meus amigos imaginários e não aceitava intromissão no meu mundo. O caseiro de meu pai tinha um filho, um pouquinho mais velho que eu e insistia em se enturmar à força. Adão era da cor café e olhos tão azuis que dava medo. E foi num dessas intromissões que tudo aconteceu.

Eu usava para quebrar coco uma rocha que havia no quintal e uma peça quebrada de carro. Bem pesada, e eu tinha que fazer esforços supremos para conseguir levantá-la e o coco era esmigalhado, pois o peso era muito. Mas, valia já que ninguém tinha tempo para quebrá-los para mim.
Lá estava eu tentando quebrar um coco! Colocava-o sobre a pedra, pegava a peça de ferro e quando ia levantando-a, o menino-café tirava o meu coco e colocava um dele para eu quebrá-lo. E é claro que eu não quebrava. Abaixava a peça de ferro, tirava o coco dele e novamente colocava o meu... E quando ia levantado o ferro, ele retirava o meu coco e colocava o dele. E tudo se repetia de novo. Na quarta ou quinta vez que isso ocorreu, eu lancei a sentença: “Se mexer no meu coco de novo, vai se arrepender!” E ele mexeu. Tirou o meu coco e quando ia colocando o dele eu desci o ferro com força...

Lembro apenas de uma mãozinha esbagaçada na pedra, ele gritando que eu havia arrancado o dedo dele. Ainda tenho na mente os olhares de raiva sobre mim(ou eu via os olhares desse modo) mas mesmo assim eu ia à casa dele levar bolo, farelo de castanha de coco( já que eu não controlava a força e quando ia quebra-lo, esmigalhava tudo). Passei muito tempo lembrando da maldade que fiz e sinceramente sempre tive na lembrança que havia arrancado a mão dele. Eles foram embora da fazenda pouco tempo depois, e sempre associei a partida deles com o fato.

Minha mãe me disse a uns anos atrás que foi um pedaço do dedo indicador (pensava que fosse a mão...), e isso me trouxe certo alívio, afinal a mão tem cinco dedos.

Agora eu estava vendo (um velho rsrsrsrs) cor de café, com olhos azuis e um indicador pela metade, e com nome Adão... Será que devo falar com ele ou não? Que dúvida! Ainda me pesa o que ocorreu, mas acho que é hora de resolver isso. Só preciso ter jeitinho ao falar, ser sutil e sondar.

Levantei e fui até onde estavam os três e disse num só fôlego:
- Boa tarde, meu nome é Marly, filha do David de Bastos e penso que fiz isso no seu dedo! (Aff que sutileza heim?).

Ele levantou e disse:
- Não acredito! Você é a garotinha que quebrou o meu coco e dedo ao mesmo tempo?

- Pois é... Estava olhando vocês quando entraram, e me chamou atenção a sua cor de pele e olhos e a da sua filha. Depois falaram seu nome e eu olhei a mão... Foi um pedaço razoável de dedo.

- Já aprendi a viver sem ele, afinal tem mais de quatro décadas isso não é? - Olhou para o cotoco de dedo e sorriu.

- Sim tem, mas em nome da minha infância, da minha introspecção, do meu mundo particular, da minha falta de senso, gostaria de pedir perdão pelo que te fiz.

- Perdoada a mutos anos! E se está sozinha eu e minha família te convidamos pra jantar lá em casa amanhã, pois assim podemos colocar o papo em dia! Embora, me lembro bem de que você nunca me deu chance de papo algum quando tinha quatro anos.

Agradeci, mas disse que não poderia ir, tinha trabalho a fazer e o tempo já se esgotava. Despedi com um abraço em cada membro da família e saí dali mais aliviada, mais leve! E sinceramente nem imaginava que isso ainda me pesava. Agora estou leve! Ao menos quanto a essa bagagem que carreguei por tantos anos.

Marly Bastos

23 comentários:

  1. Marly, apesar das "férias" não resisti a vontade e a saudade de ler suas postagens. Passei por aqui e fiquei preso no texto. Que coincidência legal! Muito bom porque aliviou o coração da amiga.
    Nada como resolver essas coisas "penduradas" em nossas lembranças, não é?
    Dia desses fiz o mesmo, em situação diferente e senti o mesmo alívio. Não vou contar aqui porque fica muito extenso e... estou em "férias", né?
    Beijo com doce carinho.
    Manoel.

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  2. Ai minha querida que rico que está de volta, espero que esteja tudo bem. Sua postagem incrível e tudo a ver com o perdão/pecado da minha postagem. Podem passar os anos que o que precisa de ser consertado sempre volta. É Deus nos dando oportunidades de se redimir ainda que para uma menina de 4 anos não tinha tanta culpa assim pois era apenas uma criança. Mas Deus sabe o que havia em seu coração todo esse tempo. Adorei a sua volta, te adoro miga. bjim.

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  3. Alguns fatos são, aparentemente, esquecidos, tanto pelo que representaram quanto pelo tempo decorrido, desde então. De repente, do nada, estão à nossa frente, de olhos arregalados, trazendo tudo de volta. Quando a oportunidade favorece uma troca de palavras satisfatórias, já nem precisam retornar ao baú. Ficam gravados com outra cor, clara, viva e nada assustadora.

    Bjs.

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  4. Boa noite minha querida Marly. Se esse texto não foi fruto da tua imaginação fértil, minha nossa, que coisa... mas será que aconteceu mesmo? reencontrar alguém depois de 40 anos? De qualquer forma foi uma leitura muito gostosa. Um grande beijo nesse coração maravilhoso. Te cuida GURIA. FIQUE COM DEUS.

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  5. Puxa, Marly!

    São as voltas que a vida dá. Que bom que você o reencontrou e pode aliviar essa sensação de culpa que, na verdade, não existia. Afinal, vocês eram crianças e ainda sem o poder de avaliar as consequências de uma atitude impulsiva.

    Mundo pequeno, não?

    Beijokas, queridona.

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  6. As suas memórias trazem ao leitor uma menina saudável e arteira :)) Um abraço, Yayá.

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  7. Caraca! Menos um peso na mochila pra carregar o peso do Mestrado. Que bom! Menos um problema na gaveta.
    Um beijo grande

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  8. Bom dia,Marly!!

    Que delicia de texto querida!!!Nossa...imagino a surpresa!!!Mas realmente estas coisas pesam em nós...deve ser a consciência...rsrsrs
    Que bom poder se libertar...abandonar os fantasmas do passado...Parabéns!!!
    Beijos!Tudo de bom.

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  9. É assustadoramente interessante como o passado volta a tona bem em frente ao olhar, de uma maneira mágica, e talvez até, pra que todo o peso de uma consciência fosse retirado,,,pena, não ter tido tempo ao tal jantar, poderiam ter revivido muitas outras coisas...beijos de bom dia pra ti amiga...

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  10. o meu comentário a este seu post está dentro de mim...
    leia-o, Marly.

    bj...nho

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  11. Poeta Marly
    Na hora me assustei
    Estava fazendo uma experiência
    Com o vídeo
    Mostrando para uma pessoa
    Acabei postando no meu blog
    É minha música preferida
    O enredo é a vida de Syd Barret
    O primeiro que deixou o grupo
    Mas amo os teclados do Richard
    Wright
    Tuas palavras foram enigmáticas
    Para mim
    Muito belas
    E as guardei no coração
    Elas apareceram
    E eu não deletei mais o vídeo
    Grato
    Sei que não sou ainda
    Um poeta
    Mas luto todo dias de sol
    Todas as noites de luas
    E estrelas
    Ainda não sei voar
    Por que sequer me tornei pássaro
    Ainda sou um homem comum
    Converso com as estrelas
    Mas meu mundo é imanente
    Nada de muito transcendente
    Minha metafísica é da Terra
    Minhas fases da lua
    Sou Telúrico
    Existencial
    A vagar solitariamente
    Pelo ocidente
    Escutando Pink Floyd
    João Gilberto
    Um net book na mão
    Um verso manuscrito no
    Pulso
    Um impulso de viver
    E sonhar
    Um amigo violão
    E aja solidão boa.
    Mui grato pelos versos...
    Espero que esteja tao.

    Reverências poéticas.

    Volto logo
    para falar mais de literatura
    e dos teus textos



    Luiz Alfredo – não poeta.

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  12. fabuloso, un saludo desde Barcelona y esperamos tus comentarios en "o noso blog" , moites gracies.

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  13. Nossa... Eu achei que tratava-se de um conto em forma de monólogo e não um fato ocorrido de verdade.
    É estranho como, por vezes, sentimos algo errado dentro de nós e não sabemos o porque, talvez seja a mente que nos defende, nos bloqueia, contanto, não nos pode aliviar do passado.
    O seu passado retornou para um tipo de redenção que talvez sua alma estivesse precisando e não posso sentir, mas imaginar o alívio que sentiu depois de tudo.

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  14. Muito obrigada pela sua presença carinhosa em minha comemoração, Marly.

    Postei a segunda parte da brincadeira das palavras, você está lá no meu post, dê uma olhadinha nele, o "Véspera de festa..."

    Ainda postarei a descrição do seu blog que é a primeira parte da brincadeira,estou seguindo a ordem dos comnentários deixados, mas gostaria que lesses o agradecimento que te faço lá.

    Volto com tempo e calma pra ler seu texto, adoro o que você escreve

    Um beijinho

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  15. Mas esta foi uma revisitação de perdão e de um abraço reconfortante!
    Tudo sarou agora!
    Já se pode sorrir de novo.

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  16. Oi Marlizinha!!!

    Q
    estava lendo a sua história e pensando aqui comigo quantas delas cada um de nós levamos?
    Quantos sentimentos de culpa desnecessários;
    As vezes é muito mais facil perdoar ao outro do que a nós mesmos.

    Achei muito bacana vc dividir este pedaço da sua historia conosco.

    Que bom que vc ficou mais leve. a culpa as vezes é totalmente desnecessária.

    Te deixo os parabéns pelo seu texto 9 cronica 0 tão bem escrita e o meu beijo carinhoso!!!

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  17. Tu arrancou o dedo do Adão mesmo? Caramba. Conheci teu blog hoje. Serei seguidor e leitor assíduo. Visite o meu... http://ressureicao-rr.blogspot.com/ beijo pra voCÊ. RR

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  18. Amiga, as pessoas sábias conseguem sempre tirar proveito de todos os tempos passados. Muito belo texto... Abraços

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  19. A vida
    às vezes dá uma chance
    e podemos restaurar
    alguns maus
    que fizemos aos bichos
    as pessoas
    aos amados(a)
    o conto parece um grito primal
    mas no final o poema
    sempre vale a pena.
    Poeta
    Abraços poéticos

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  20. Lindo Marly, um texto real maravilhoso e devemos sempre perdoar, que bom que vc se sentiu mais aliviada, bonita sua atitude!

    Bj

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  21. Olá Marly querida

    Adoro tuas histórias, me perco em pensamentos, imaginando a cena...

    Beijos
    Ani

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  22. Até eu fiquei mais aliviada, ufa. Tadinho, deve ter sentido uma dor terrível! Ainda bem que não ficaram mágoas.

    Um abraço! Vou te seguir.

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  23. Nossa, que coisa é a vida!
    Tenho certeza que agora, quando vocês se lembrarem um do outro, será com muito mais ternura. Pena que nem sempre dá pra consertar assim!

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